Primeira manifestação
constitucional do continente americano.
Por Antonio Noberto
No dia 1º de novembro de
1612 foram promulgadas pelos franceses as Leis fundamentais decretadas na Ilha
do Maranhão, que passou para a história como a Primeira Constituição da
América, publicada por Daniel de La Touche de la Ravardière e François de Razilly
na Praça do Forte, em São Luís, então capital da França Equinocial, território
que, extraoficialmente, estendia-se do Ceará à região amazônica.
A generosidade
gaulesa em escrever e divulgar a população, a fauna, a flora e o território
recém-conquistado, além de confeccionar mapas da região, permitiu que a
fundação de São Luís ficasse conhecida como uma fundação letrada, muito em
razão da maior afinidade às letras que às armas. Os súditos de Henrique IV
(idealizador da Colônia) e de Luís XIII (realizador), especialmente os
capuchinhos e cronistas Claude d’Abbeville e Ives d’Evreux, que escreveram as
primeiras obras sobre a região, deram fartos e promitentes indicativos do
futuro que desenhavam para a região.
A promulgação das Leis fundamentais
decretadas na Ilha do Maranhão e todas as generosidades no trato e na relação
com os nativos confirmavam o norte promissor desta terça parte do Brasil, o que
justifica a frase do maior poeta brasileiro, Antonio Gonçalves Dias: “(...) a
expulsão dos franceses levou consigo muitas esperanças”.
Por outro lado, as coroas
ibéricas expediam carta aos aventureiros e descobridores, que estabeleciam um
conjunto de normas a serem adotadas no trato com os nativos, tudo baseado nas
leis vigentes nas cortes de Portugal e Espanha.
Sobre o tema, o professor,
Doutor e ex-Procurador Geral do estado do Maranhão, José Claudio Pavão Santana,
defendeu na sua tese de doutorado na PUC-SP no ano de 2008, que tais
“conquistadores não dispunham de qualquer competência para elaborar normas que
pudessem ser consideradas, ao menos no continente americano, como tendo sido
por si elaboradas. E isto é o que difere a descoberta (francesa) do Maranhão”.
Tempos depois a tese foi ampliada e publicada com o título O
pré-constitucionalismo na América, trabalho que mostra cientificamente a
precedência dos gauleses no tema.
O conjunto de regras
instituídos na cidadela de Saint-Louis (atual Praça Pedro II) organizava
política e juridicamente o estado e a convivência na França Equinocial. A
promulgação foi, na verdade, a materialização do pacto feito entre os
expedicionários no porto de la Houle, na pequenina cidade de Cancale, na
Bretanha, que prometiam “observar o que for necessário ao bem da colônia”,
conforme narra Abeville na obra História da missão dos padres capuchinhos na
Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, publicada em 1614 em Paris.
O conjunto de Leis é um
misto de verdades e de conhecimentos da antiguidade e do período medieval, como
a Lei de Talião, que pregava “Olho por olho e dente por dente”, e do
teocentrismo medieval, revelado na primeira parte do documento. A segunda parte
reza sobre a honra e obediência ao Rei da França, personificado em especial nos
líderes La Touche, Razilly e Harlay, e a terceira e última regia a convivência
na colônia, que, dentre outras coisas, visava a ordem e o “sossego público”.
Observa-se o adiantamento civilizatório do modelo recém implantado no Maranhão,
denotado nas Leis, que apesar de prever a efetividade e reciprocidade do “olho
por olho”, apresentava cláusulas e normas bem adiantadas para a época, como as
que previam o sossego público, o meio ambiente e a dignidade da pessoa humana.
A única reprodução conhecida
das Leis fundamentais faz parte do acervo da Exposição França Equinocial para
sempre, em cartaz no Forte de Santo Antonio, na Ponta da Areia, em São Luís.
*Pesquisador, curador da
Exposição França Equinocial para sempre, membro-fundador da Academia
Ludovicense de Letras e sócio efetivo do IHGM
Fragmentos das
Leis Fundamentais decretadas
no Maranhão em 1612
Nós, Daniel de La Touche,
Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, François de Razilly, também Cavaleiro,
Senhor do dito lugar e de Aunelles, procurador do alto e poderoso Senhor
Nicolas de Harlay, Cavaleiro, Senhor de Sancy, Barão de Molle e Gros-Bois,
Conselheiro de Estado e do Conselho Privado do Rei, loco-tenentes-generais de
Sua Majestade nas Índias Ocidentais – tendo empreendido, por graça de Deus, o
estabelecimento de uma colônia francesa no Maranhão e terras adjacentes (...)
reconhecendo a graça, a bondade e a misericórdia demonstradas por Deus ao
conduzir-nos tão felizmente a bom porto, começaremos pelas ordenações que dizem
especialmente respeito a sua honra e a sua glória:
(...)
I – honra a Deus
- ordenamos, pois, expressamente, a todos,
quaisquer que sejam qualidades e condições, que temam, sirvam e honrem a Deus,
observem seus santos mandamentos e prometam não estimar nem empregar senão os
que souberem ter essa santa e reta intenção;
(...)
II – Honra ao rei
- Depois do estabelecido nos
artigos supracitados o que diz respeito principalmente à glória de Deus,
determinamos agora o que se relaciona com a honra de nosso Rei, o qual houve
por bem distinguir-nos com sua escolha para representá-lo neste país.
Ordenamos, pois, que ninguém atente contra nossas pessoas ou contra a vida da
colônia, por meio de parricídios, atentados, traições, monopólios, discursos
feitos no intento de desgostar os habitantes, e cousas semelhantes, e isso sob
pena de ser o infrator considerado criminoso de lesa-majestade e condenado à
morte, sem esperança de remissão;
- ordenamos expressamente
aos que tiverem conhecimentos de atos tão perniciosos que os revelem
incontinenti, sob pena de igual castigo.
(...)
III – Convivência na Colônia
- Depois de estabelecido o
que diz respeito à honra e ao serviço do Rei, representado em nossas pessoas,
assim como ao bem-estar e á segurança desta colônia, ordenamos, para manutenção
desta companhia e da sociedade, que vivam todos em paz e amizade, respeitem-se
mutuamente, segundo as condições e qualidades pessoais, e desculpem uns aos
outros suas fraquezas, como Deus manda, e isso sob pena de serem considerados
perturbadores do sossego público;
- ordenamos que quem quer se
encontre furtando, seja, da primeira vez, açoitado ao pé da forca, ao som da
corneta e sirva durante um ano nas obras públicas, com perda, nesse espaço de
tempo, de todas as dignidades, salários e proveitos; da segunda vez, seja o
infrator enforcado.
- ordenamos que não se
cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena
de morte, pois seria isso não só a ruína da alma do criminoso, mas também a da
colônia; igualmente ordenamos, sob pena idêntica, que não se violentem as
mulheres solteiras;
- proibimos ainda quaisquer
roubos contra os índios, seja de suas roças, seja de outras co
isas que lhes
pertençam, sob as penas supramencionadas.
E para que tudo fique claro
e bem acertado de uma vez por todas, ordenamos sejam essas ordenações lidas e
tornadas públicas na presença de todos e registradas como leis fundamentais e
invioláveis na Secretaria Geral deste Estado e colônia, para serem consultadas
quando necessário. Em testemunho do que, assinamos as presentes ordenações com
o nosso próprio punho; e serão subscritas por um de nossos conselheiros,
secretário ordinário.
Forte de São Luís, Maranhão, dia de Todos os Santos, 1º
de novembro, ano da graça de 1612, (aa) Ravardière – Razilly. Pelos meus
senhores: (a) Abraão.
Fotos de Gilson Ferreira
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